Os Três Tipos de Amor (Do Bom Amor, e do Outro)
por Cláudio Naranjo; Barcelona 17/11/2000
Tradução: Maria Luiza Duarte Frade
“Pode-se dizer que todos os males que se tratam na terapia começam com um problema amoroso; todos os problemas emocionais começam por uma carência amorosa na vida da pessoa.”
Comentarei, como Suzy, celebrando a iniciativa dos organizadores em fazer um evento sobre este tema “amor e terapia”, porque me parece que merece ser enfatizado.
A terapia tem a ver com muitas coisas, de modo que se pode falar de terapia e isto, ou terapia e aquilo: a terapia e a compreensão de si mesmo, a terapia e a dor, a terapia e a transferência, enfim. Mas a relação do assunto amor com o assunto terapia é mais intrínseca. Se pode dizer que todos os males que se tratam na terapia começam com um problema amoroso; começam todos os problemas emocionais por uma carência amorosa na vida da pessoa.
A natureza das neuroses, ou como quer que sejam chamadas – agora que está desaparecendo esta palavra, tão útil – todas as perturbações emocionais, digamos, consistem em perturbações do amor, problemas do amor. E a terapia tem muito que ver com o amor em seu processo. Não é que baste o amor – creio que não basta – para que haja boa terapia; mas até os psicanalistas estão hoje em dia bastante de acordo que não é o insight o assunto mais importante na terapia psicanalítica (que tem sido a terapia tão essencialmente orientada ao insight através de toda a sua história), mas a relação. E quando se fala de relação se quer dizer em forma científica algo que seria pouco científico chamar “amor”; bom, pelo menos benevolência. E o fim da terapia é o amor, porque, pelo menos, penso eu que não estou só, aqui entre os presentes, em pensar que a felicidade se consegue pelo amor; se a felicidade é própria da saúde, passa pela capacidade amorosa, passa pelo curar a própria capacidade amorosa.
Agora, entrando no meu tema específico, do “O bom amor e o outro”, qualquer pessoa que viva na Espanha ou que seja espanhol se dará conta de que há aí uma referência ao Arcipreste de Hita, o “Livro do bom amor”. Mas, não compartilho sua visão de que só o amor a Deus seja bom. Naquela célebre obra se contrapõe o amor a Deus com o amor carnal. E a proposição que venho fazer aqui é que ambos são bons amores, e que são duas partes do bom amor; que o amor não é uma só coisa.
De um ponto de vista podemos dizer que são muitíssimas coisas. Assim como uma vez Mendelssohn comentava, a propósito da linguagem musical, que não é que seja menos exata que a linguagem verbal, mas que é mais específica porque cada frase musical que expressava uma alegria, expressava uma alegria um pouco diferente. Assim, os gestos do amor são inumeráveis. Poderíamos dizer que há gente que ama através de sua capacidade de apreciação, há gente que ama através de sua tolerância, há gente que ama através da gratidão; são muitas as manifestações da emoção que têm a ver com o amor, mas me parece que fundamentalmente há três elementos básicos no que chamamos amor, três amores fundamentais.
Um é o amor que poderíamos chamar o amor freudiano, o Eros – amor intimamente vinculado com a sexualidade, que para Freud foi o amor básico (a amizade para ele era um amor erótico privado de seu fim, e a benevolência uma transformação do Eros). Mas, é mais fácil, menos rebuscado, pensar que há na benevolência um amor diferente do Eros, que podemos chamar de amor cristão. Apesar do que digam os freudianos não creio que quando se fala de “amar ao próximo como a si mesmo” se trate de amor erótico sublimado. Mais natural nos parece pensar que a generosidade e a empatia existem por direito próprio, por assim dizer; e é isto o que no cristianismo se designou como caritas, ou em grego, Ágape. Intuitivamente sentimos que nem deriva normalmente a atração sexual de uma atitude compassiva, nem deriva a compaixão da sexualidade; devemos, portanto, falar de Eros e Ágape, ou de amor e caritas.
Mas também há um terceiro amor, que me parece tão diferente destes dois como eles entre si, e que merece ser reconhecido como relativamente autônomo: o amor que está implicado na amizade, e que para continuar acudindo ao grego, poderíamos chamar Philia, palavra à qual recorre Platão para algo muito diferente do que hoje em dia chamamos amor platônico – que é uma manifestação sublimada do impulso erótico. Trata-se de um amor que bem poderíamos chamar “Socrático”, pois embora Sócrates use a palavra Eros em referência ao amor ao ideal – ao belo, ao grande, ao bom e às demais coisas que valem por si mesmas – este amor aos ideais ou às idéias é só por analogia comparável à atração amorosa entre os sexos. O amor à justiça e o amor ao divino, me parece, não só diferem do Eros em seu objeto, mas em sua natureza mesma e qualidade subjetiva: no tanto que o erótico é apetitivo, este terceiro amor que subjaz a relações que não são nem eróticas nem de ajuda ou proteção, mas de amizade “desinteressada”, é valorativo. Poderíamos chamá-lo amor-adoração; mas no âmbito dos sentimento mais comuns sua manifestação típica é o apreço. Relacionam-se, então, os três amores com o desejo, com a bondade (que culmina com a compaixão) e com o apreço – que se vê exaltado na admiração e culmina na adoração.
Podemos falar em um amplo sentido do Eros como um amor-gozo: um amor que goza do outro, que se compraz na beleza do outro, e indo mais além de uma definição estritamente ligada à sexualidade incluiríamos o que o budismo chama “mudita”, que é um alegrar-se da alegria alheia, que é muito diferente da benevolência compassiva que não quer o sofrimento alheio. Um tem mais a ver com o Eros e o outro com o Ágape. Poderíamos pensar que é a bondade a mais humana das manifestações do amor, mas não seria exato. Embora seja humana a generalização maior ou menor da benevolência, em suas origens o amor-bondade está intimamente unido ao amor maternal, sendo uma extensão natural do que sente a mãe pelas crias (e falo de “crias” melhor que de “filhos” para aludir a algo que não é próprio somente do homem, mas de todos os mamíferos). É por acaso mais humano o amor aos ideais que a bondade mesma? Então, às vezes dizemos de uma pessoa bondosa que é muito “humana” porque falamos de “humanidade” para significar precisamente o amor benevolente, e em troca associamos o amor-adoração com o fanatismo e muitos atos “inumanos”.
No momento me limito a assinalar que o amor “valorizante” não deixa de ter antecedentes ou raízes biológicas, pois em seus começos este amor ao grande (que contrasta com o amor maternal ao pequeno) é muito próprio do que se sente de menino em relação ao pai. Se a mãe é a que nos dá o que necessitamos, satisfazendo nossos desejos, o pai é aquele para o qual ela está olhando, aquele a quem a mãe valoriza. A mãe, que nos dá tudo, é fonte original dos valores, mas também modelo original no que diz respeito ao que há de ser valorizado – e assim é que ocorre, como se a mãe implicitamente delegasse ao pai a ordem dos valores, simplesmente porque o menino percebe que ela o ama.
Algo tem a ver o Ágape, então, com o amor de mãe, e algo tem a ver com o amor aos ideais ou Philia com o amor de pai. E digo que este tem uma raiz biológica não só porque deriva de uma situação arcaica ou proto-psicológica em nossa vida individual, mas porque a valoração se relaciona estreitamente com a imitação, que não só está na origem de que sejamos animais culturais, mas que é muito mais arcaica que a cultura e a linguagem. Pensemos em como os pintinhos seguem o primeiro objeto que se move em seu entorno – que pode ser a galinha mas pode também ser (como investigações sobre este fenômeno de imprinting demonstraram) uma caixa de sapatos. Como Lorenz observou decênios atrás em seus experimentos com patos, ficam para toda a vida ligados ao objeto em questão, que bem pode ser tão arbitrário como um relógio despertador.
Embora os humanos sejam imensamente mais complexos que os patos e as galinhas, de modo que só podemos falar de imprinting no nosso caso em um sentido metafórico, também nós temos uma disposição inata a “seguir” um modelo, e na nossa vida adulta é claro que nos deixamos guiar por aqueles a quem admiramos. Não conhecemos todos a experiência de como, quando uma pessoa estima outra, se apega à sua maneira de falar? E seguramente recordaremos como, quando crianças, admiramos o herói de um filme e logo, saímos do cinema caminhando com seu estilo. A imitação é uma propensão biológica que nos faz humanos, e imitando os sons emitidos por nossos pais aprendemos a falar. E não só imitamos características individuais de nossos pais: imitamos aquele que é geralmente admirado, e é precisamente através dele que se transmite a cultura.
Recentemente surgiu uma nova ciência, cujo nome ainda não escutei em castelhano – suponho que será “memética”, por analogia com a “genética” – na qual se adota o ponto de vista de que a galinha seja o meio de perpetuação dos ovos, e nós, meios de transmissão dos gens. Este ponto de vista, proposto por Dawkins na biologia, inspirou um pensamento análogo em relação aos “memes”, que são entidades culturais, como a linguagem. Propõe-se então, que as coisas ocorrem como se as idéias se utilizassem de nós, humanos, para se perpetuarem, e se transmitissem através de nossa capacidade reprodutora. É uma idéia que está tomando muito corpo, e já foram escritos vários livros sobre a capacidade imitativa humana que torna possível esta supervivência dos pensamentos e é tão inseparável do que somos. Não só porque seja humana a imitação, mas porque a imitação subjaz ao que consideramos nossa humanidade: bem se sabe que as pessoas criadas entre selvagens ou animais não só é a linguagem o que lhes falta, ou a “cultura” no sentido freqüente de algo extrínseco à própria natureza, mas aspectos intrínsecos ao que consideramos que é um ser humano.
Mas, encerro aqui minha digressão, para completar um pensamento interrompido: que há um amor que tem a ver com a mãe, um amor que tem a ver com o pai e um amor que tem a ver com o filho. Pois o amor-desejo é o mais característico do filho na tríade original. O amor que se compraz na satisfação dos desejos próprios é um que nos acompanha desde que nascemos, e poderíamos dizer que é o menino ou a menina interior em nós quem persegue a satisfação de sua necessidade e busca sua liberdade. Assim como um célebre catalão – Raimundo Paniker – relaciona as três pessoas da Trindade com as pessoas da gramática – o Eu, o Tu e o Ele, outro tanto podemos dizer dos três amores. O amor desejo é um amor que se focaliza no Eu. O amor de mãe se dirige ao Tu. O amor transpessoal – amor ao ideal ou amor ao divino – tem relação com o Ele. E, claramente, o amor-bondade, de caráter materno, que compartilhamos com os mamíferos (embora não sejamos todos tão bons e generosos) é mais emocional. E às vezes se diz que é demasiado intelectual o amor valorizante. Se alguém se une a uma mulher porque a considera uma pessoa excelente, por exemplo, alguém poderá dizer-lhe “eu creio que esse amor que lhe tens é demasiado intelectual”, sentindo que lhe falta coração. O amor erótico, por outro lado, é mais instintivo.
Parece, então, que tiveram que ver com nossos três cérebros estes três amores. O cérebro instintivo com o Eros; o cérebro emocional ou cérebro médio (que é o cérebro mamífero) com o Ágape, e o cérebro propriamente humano ou neocórtex, com o amor valorizante, que olha ao céu (diferentemente do amor instintivo que olha à terra, ou o amor materno que olha à cria).
Já lhes expliquei como entendo os ingredientes do bom amor. Mas vamos agora no que consiste o mau amor.
Talvez se possa dizer que no final tudo é amor, de modo que podemos dizer que só existem o bom amor e seus desvios, suas perversões. Eu, pelo menos, sinto profundamente a verdade dessa linha final da Divina Comédia que nos fala de “o amor que move o sol e as demais estrelas”: tem sentido conceber o amor como a força central não só do humano, mas da Criação universal. Quando um jornalista perguntou a Einstein sobre a incógnita mais importante da ciência, respondeu: “se o Universo era bom”; quer dizer: se existe ou não existe uma intenção benévola por trás da criação. Mas no geral os científicos se conformaram em perguntar menos, e nossa concepção atual da ciência se caracteriza pela exclusão da pergunta sobre o porquê das coisas – o aspecto teológico ao qual se referia a pergunta pela “causa final” dos antigos. Assim, o conceito do amor universal distingue a percepção meramente científica da percepção estética ou poética, metafísica ou religiosa – enfim, aquela que evoca o “outro lado da mente”. Mas não é preciso que nos remontemos à idéia de um possível amor cósmico para perguntar-nos sobre os males do amor, que conhecemos de primeira mão.
Há em primeiro lugar os obstáculos ao amor. Assim, é óbvio que o amor compassivo não é muito compatível com o ódio. A raiva fecha o coração de uma pessoa. E o medo é antagônico em relação ao amor erótico. Se alguém foi ameaçado ou castigado por seus desejos – e sabemos desde Freud quão freqüentes são as fantasias de castração resultantes – termina não atrevendo-se ao prazer. Tão pouco se chega a valorizar o outro com a inveja ou com a competição. Mas em geral todas as paixões interferem com todos os amores. Todas as necessidades neuróticas interferem com o amor.
Há ainda falsos amores, há as falsificações do amor. Assim, a compaixão poderia caracterizar-se como uma energia muito alta, um dos mais altos valores – e quando disse São João “Deus é amor” seguramente se referia ao amor compassivo, ao amor benévolo – mas a maior parte do que se chama bondade no mundo humano é super egóico, quer dizer, resultado de mandatos internalizados da cultura que diz “deves ser bom”. Implica uma compaixão obrigatória e uma ameaça: “deves … e se não, irás para o inferno”. E cada um se condena a si mesmo implicitamente por não ser suficientemente bom, e se manda efetivamente ao inferno na vida. Não é muito amorosa esta atitude, e o que se chama compaixão poucas vezes não deixa de ser resultado da boa educação e do fingimento.
E o amor erótico também se falsifica. Assim como existe um amor instintivo são e verdadeiro, que é profundamente satisfatório, há um falso amor erótico que é como uma moeda de troca para conseguir amor, uma forma de sedução na qual a sexualidade se põe a serviço de uma sede de proteção, inclusão ou companhia. Não é o instinto sexual o que impulsiona a pessoa em tais casos, mas suas necessidades neuróticas, assim como a de preencher a solidão ou a insignificância – só que estas necessidades se disfarçam por trás da máscara de eros.
E não se falsifica o amor-respeito de forma semelhante a como se falsifica a benevolência? O mandamento de Moisés “honrarás a teus pais” se baseia na compreensão de que uma pessoa sã sente um são apreço por aqueles que foram os primeiros “deuses” em sua vida. Durante nossa primeira infância seguramente nossos pais, que eram a mostra do que é um ser adulto, nos pareciam tão gigantescos como de adultos nos parece o divino ou sobrenatural, e apesar de não termos esquecido, não é significativo que nossa vivência do divino através da história tenha se formulado principalmente por meio das imagens de nossos progenitores? Por mais que não se possa desconhecer que alguns pais sejam pessoas emocionalmente enfermas e por isso pessimamente dotados para sua função, creio que encerra uma grande verdade a observação do pitagórico Jámblico – reiterada por Gurdjieff – de que um bom homem ama a seus pais.
Que pese a verdade que encerra o quarto mandamento, no entanto, ocorre que, por trás de tantos séculos de autoritarismo, o imperativo de amar aos pais nos infantiliza. Não é um amor verdadeiro o que inspira o mandato social e familiar, mas um amor servil; e mais geralmente, se lhe rende homenagem a muitas coisas – tanto ideais como pessoas – como parte de um gesto obediente.
Creio que não necessito demonstrar ou explicar o fato comprovável através da experiência de todos que, obviamente, os falsos amores também constituem interferências no amor verdadeiro. Entranham uma malversação da energia psíquica comparável ao que ocorre com a nutrição e a energia biológica em um organismo que alimenta um parasita. E o que “ama” só às custas de permanecer cego ao seu auto-engano perpetua sua própria mentira e sua inconsciência – que são obstáculos da vida autêntica e também do amor. Pelo contrário, quando a pessoa começa a conhecer-se através de um processo terapêutico ou espiritual, cedo ou tarde descobre que não ama de verdade, e somente a partir do descobrimento de sua falsificação e de seu vazio começa a descobrir o amor verdadeiro. Mas tem que ser muito virtuosa uma pessoa para dar-se conta de que não ama, pois tanto do nosso bem-estar deriva de sentirmo-nos amorosos e é muito o que se vem investindo na imagem de pessoa boa. É muito difícil, apesar de heróico, despojar-se dessa ilusão para logo saltar ao abismo pelo que misteriosamente se chega à vida verdadeira e seus valores.
E há amores eminentemente parasíticos: amores que são carências disfarçadas por trás da máscara do amor. Essencialmente são maneiras de preencher o próprio vazio, maneiras de compensar as próprias carências com o amor alheio. E me parece que estes amores parasíticos também são de três classes, segundo o tipo de amor ao qual se orienta sua sede. Seguramente todos conhecemos pessoas que sofrem e se perdem em uma busca exagerada do amor através das relações sentimentais ou da sexualidade, que tão estreitamente ligada está ao sentir-se aceito e valorizado. Ainda quando o que se busca às vezes parece ser mais o prazer que o amor, creio que isso pode ser uma ilusão que oculta uma busca não reconhecida de amor através do sexo.
Outras pessoas – que foram mais dependentes de suas mães, no geral – buscam proteção. Porque lhes faltou cuidado andam pela vida como órfãozinhos ou como inválidos, buscando o cuidado que faltou e procurando inspirar compaixão. E há pessoas que buscam sobretudo o respeito; pessoas que não buscam tanto “amor” no sentido mais comum da palavra, mas o reconhecimento ou a admiração – pelo que dedicam grande parte de sua vida e energias para serem importantes. É isto o que comumente chamamos de “narcisismo” – a paixão de ser querido dessa maneira particular: que o considerem importante, grande, superior.
E claro, quanto maior o amor parasítico, quer dizer, quanto mais energia da pessoa está dedicada ao seu aparato de buscar amor, quanto mais ocupada está em conseguir amor, menos o encontra. É como estar empurrando uma porta que se abre somente pelo lado de dentro. Muitas vezes citei esta metáfora de Kierkegaard, que em alguns de seus livros observa que a porta do paraíso só se abre por dentro. Por isso há que se chegar a apaziguar as paixões, aprender a não empurrar tanto, desenvolver uma verdadeira receptividade em relação ao que há.
Bom, já lhes coloquei minhas considerações sobre os maus amores e lhes falei antes sobre os ingredientes do bom amor, e se terminasse aqui minha exposição não me estranharia deixá-los com a impressão de que não disse nada novo. Se eu pudesse talvez pretender certa novidade seria minha atitude inclusiva e a forma como ordenei as idéias. Não me parece que tenha nada de novo no repertório de bons e maus amores que lhes apresentei.
Mas ainda não terminei e me parece que a idéia mais nova que posso acrescentar em relação ao amor, e que é o que eu gostaria de examinar mais e na prática, em forma de curso, é a de que a saúde e também a plenitude da vida amorosa tenha relação com o equilíbrio entre nossos três amores. O que implica que talvez possamos avançar até uma maneira de amar mais completa através de uma análise da própria “fórmula amorosa”. Todos temos uma determinada fórmula. Alguns têm muito amor erótico, e pouca compaixão; alguns têm muito amor ao divino – amor devocional – e pouco amor erótico. E me parece que o assim chamado mandamento cristão, que não é na realidade só cristão, porque está já no Deuteronômio e no espírito da tradição judía antiga, aponta justamente à harmonização de amores diferentes.
Seguramente, recordarão os presentes essas famosas palavras de Cristo com respeito à lei de Moisés, que pode resumir-se em: “ama ao próximo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as coisas”, mas talvez não tenham reparado que as três diretivas implicam por sua vez os três bons amores dos quais lhes falei. Pois o amor ao próximo é benévolo, pelo tanto que o amor a si mesmo – que é um amor aos próprios desejos – enquanto amor a nossa criatura interna, é também amor pelo nosso animalzinho interior, desejo de felicidade dirigido ao nosso ser instintivo. O amor a Deus, por outro lado, é obviamente um amor apreciativo, que justamente encontra no sagrado sua expressão suprema, como amor-adoração.
Penso que esta idéia de examinar o equilíbrio entre nossos três amores – ou talvez seu desequilíbrio – possa ser fecunda. E, que seguramente ao empreender tal análise nos daremos conta de que quando algum de nossos amores falta ou se vê subdesenvolvido, tratamos de compensá-lo através de uma busca impossível. Assim, podemos estar amando a Deus desesperadamente para compensar nossa dificuldade em amar as pessoas de carne e osso; ou estamos buscando desesperadamente a plenitude através do amor romântico quando o que nos faltaria seria abrirmo-nos mais à devoção, a sentimentos estéticos ou à gratuidade dos valores transpessoais. Já os convidei a questionar tais desequilíbrios e intenções compensatórias que só perpetuam uma situação insatisfatória, assim como ao se perguntarem o que se pode fazer para nivelar os três ingredientes da vida amorosa.
Só falta que lhes explique que, tão pouco, esta última idéia que lhes apresentei é minha, pois a adotei de um compatriota, o poeta e escultor chileno Totila Albert, do qual alguns de vocês já me ouviram falar e sobre cuja visão da história escrevi em “A Agonia do Patriarcado”. Ali apresentei também sua visão do que ele chamava o “Três Vezes Nosso”, um mundo possível formado por seres que alcançaram este equilíbrio interiormente entre suas partes “pai”, “mãe” e “filho”, que compreendia como a essência da saúde e da completude. Em uma pessoa cujo coração se abraçam o pai a mãe e o filho com seus respectivos amores, naturalmente não haverá nem a tirania do intelecto, nem a anarquia da impulsividade, nem o emocionalismo desequilibrado – e acredito que tinha razão ao pensar que somente através de uma transformação individual massiva poderemos aspirar a uma alternativa para a sociedade patriarcal e seus vícios arcaicos. Com esta idéia os deixo, pois: a idéia de que o verdadeiro bom amor consista não só de bons ingredientes, mas de uma fórmula equilibrada. Naturalmente, todas as fórmulas do amor estão relacionadas intimamente com o caráter, que por sua vez está ligado a um certo déficit, mas além de recorrer ao potencial transformador do conhecimento de nossa personalidade penso que podemos atentar ao quanto estamos desnivelados na expressão do nosso potencial amoroso e buscar uma maneira de reeducar-nos, buscando as experiências, influências e tarefas que possam equilibrar-nos.